O acrônimo BDSM em si surgiu somente na década de 1990, porém, suas práticas já existiam muito antes disso. A história das práticas relacionadas ao contexto BDSM é bastante extensa, então dividiremos tudo em quatro artigos.
Nessa primeira parte, falaremos mais sobre a existência de elementos BDSM na antiguidade e como isso sempre fez parte da experimentação sexual do ser humano.
Na segunda parte, focaremos nos acontecimentos dos séculos XVI ao XIX, que foi a época onde as práticas sadomasoquistas começaram se popularizar na sociedade.
Na terceira parte, iremos falar sobre os eventos do século XX até o início da década de 1980, que foi quando ocorreu a modernização das práticas BDSM.
Na quarta parte, abordaremos os momentos que antecederam o surgimento do BDSM, a criação da sigla BDSM em si e outras situações relevantes após isso.
Deusa Inana
O registro mais antigo de dominação e sadomasoquismo do qual temos conhecimento está na mitologia suméria, mais precisamente em textos relacionados à deusa Inana de mais de 2000 anos antes de Cristo.
Inana era a deusa do amor, do erotismo e da fertilidade e foi uma das divindades mais veneradas no panteão sumério, com templos por toda Mesopotâmia.
A historiadora Anne O. Nomis cita Inana com um exemplo do arquétipo de dominatrix, caracterizando-a como uma deusa poderosa que fazia com que homens e deuses se submetessem a ela.
Na mitologia, os submissos de Inana dançavam em rituais enquanto eram chicoteados por ela para satisfazê-la. Quando os submissos dela pediam por “misericórdia”, Inana interrompia a flagelação, fazendo com que tal ato seja tido como uma versão pioneira do conceito de palavra de segurança do BDSM.
Dentre os submissos de Inana, nos rituais também haviam muitos servos do sexo masculino que não se identificavam como homens e que trajavam roupas femininas. Eles eram denominados assinnu ou kurgarrū. Entre os assinnu/kurgarrū haviam indivíduos andróginos, eunucos e transgêneros.
Kama Sutra
O kama sutra, antigo texto da literatura sânscrita indiana sobre comportamento sexual humano, já descrevia há milhares de anos quatro maneiras diferentes de bater num ato sexual, regiões do corpo que podem ser atingidas e diferentes expressões de dor prazerosa realizadas por bottoms.
A coleção de textos do kama sutra enfatizava explicitamente que brincadeiras de impacto, mordidas e beliscões durante as atividades sexuais devem ser realizadas apenas de forma consensual, já que não são todas as pessoas que consideram tal atividade prazerosa.
Sob essa perspectiva, o kama sutra pode ser considerado como uma das primeiras fontes escritas a tratar de atividades sadomasoquistas de forma sã, segura e consensual.
A flagelação como ritual
Além dos rituais de Inana já citados anteriormente, durante o século IX antes de Cristo ocorreu um ritual chamado diamastigose, no Santuário de Ártemis-Orthia. Nesse ritual, as sacerdotisas praticavam flagelação em homens jovens em homenagem à deusa Orthia.
Já na Vila dos Mistérios, localizado na antiga Pompeia, cidade do Império Romano, uma figura dominante feminina alada segurando um chicote é retratada nas paredes (ver figura ao lado). Aqui, essa imagem representa a iniciação de uma mulher na religião de mistérios, antigo culto religioso greco-romano, através da flagelação.
Esses acontecimentos não retratavam violência, mas sim cerimônias sagradas de iniciação, sempre conduzidas por uma sacerdotisa.
De acordo com a historiadora Anne O. Nomis, enquanto por milhares de anos várias deusas tiveram poder sobre a sexualidade, essas divindades femininas logo seriam mortas pelo monoteísmo dominado pelos homens. A influência de religiões patriarcais como o Cristianismo e o Islamismo, em que a sexualidade feminina era tornada passiva, controlada e a serviço do marido, acabou derrubando a influência das deusas e sacerdotisas da antiguidade.
Segundo a escritora e filósofa existencialista Simone de Beauvoir, apesar da deusa Inana, por exemplo, estar num panteão sumério cercado por homens e ser igualmente poderosa ou até mesmo mais poderosa que todos eles, ela e outras figuras femininas influentes foram marginalizadas pela cultura moderna ao longo da história em favor das divindades masculinas.
Outras obras da antiguidade
Uma das provas gráficas mais antigas de sadomasoquismo é a Tumba da Flagelação (ver figura ao lado), localizada na Necrópole de Monterozzi, Itália. Ela foi descoberta na década de 1960 e é datada de ser de 490 anos antes de Cristo. Nessa tumba, há uma imagem que aparenta ser de dois homens realizando flagelação de caning com uma mulher numa situação erótica.
Outra referência à flagelação pode ser encontrada no sexto livro da coleção de Sátiras, do poeta romano Juvenal, de aproximadamente 200 anos antes de Cristo. Nessa obra, há uma mulher que acha prazeroso chicotear homens. Já na obra Satíricon, escrita por Petrônio por volta do ano 60 antes de Cristo, há outra pessoa que também obtém prazer ao chicotear um homem.
Apesar da comunidade BDSM ter sido criada somente após a existência da internet. Podemos ver que sempre foi da natureza do ser humano incluir alguns dos elementos que compõem o BDSM em sua experimentação sexual.
Bibliografia
- Brown, William (2016). Third Gender Figures in the Ancient Near East. Ancient History Encyclopedia.
- De Shong Meador, Betty (2000). Inanna, Lady of Largest Heart: Poems of the Sumerian High Priestess Enheduanna. University of Texas Press. p. 162. ISBN 978-0292752429
- Fonrouge, Gabrielle (2018). This vital part of BDSM is a lot less sexy than you’d think. New York Post.
- Nomis, Anne O. (2013). The History and Arts of the Dominatrix. Mary Egan Publishing & Anna Nomis Ltd. p. 29-62. ISBN 978-0992701000
- Pryke, Louise M. (2017). Ishtar (Gods and Heroes of the Ancient World). Routledge. p. 196-197. ISBN 978-1138860735
Ligações internas
- A História do BDSM: Parte I
- A História do BDSM: Parte II
- A História do BDSM: Parte III
- A História do BDSM: Parte IV
Texto publicado em 14 de agosto de 2020.