A História do BDSM: Parte IV

Dois homens da comunidade Leather na Parada LGBT de Colônia, na Alemanha.

Enfim, chegamos ao final da série de artigos de destrincha a história por trás do BDSM. Vimos elementos BDSM sendo utilizados desde os primórdios da humanidade, o sadomasoquismo popularizando-se na sociedade através da dominatrix, o desenvolvimento da moda fetichista, o surgimento do Leather e as diversas obras e demais acontecimentos que influenciaram a construção da cultura BDSM.

Nessa última parte, falaremos mais sobre os eventos finais que antecederam a criação do BDSM, a criação em si, e os acontecimentos após isso.

Drummer e alguns seus contribuidores notáveis

Capa da revista Drummer, edição número 43. Na capa encontramos o termo BDSM "master/slave".Drummer foi uma revista LGBT voltada ao público leather, B&D e S&M, sendo a maior fonte informativa dessa temática durante as décadas de 1970 e 1980, e durando até o final da década de 1990. Ela foi criada em Los Angeles em 1975 por John H. Embry and Jeanne Barney, mas devido à problemas com a polícia local, a empresa moveu-se para San Francisco com Jack Fritscher assumindo o cargo de editor-chefe.

Além de Fritscher, a revista também contou com contribuições de outras figuras relevantes do cenário leather, como Tom of Finland, Tony DeBlase, Guy Baldwin e Samuel Steward, quatro personalidades que estão listadas no Hall da Fama do Leather.

Bandeira do orgulho do couro na Parada do Orgulho LGBT de Vancouver.
Bandeira do orgulho leather na Parada do Orgulho LGBT de Vancouver.

Tom of Finland foi o maior nome da arte erótica gay do século XX, produzindo mais de 3500 ilustrações ao longo de sua carreira. Tony DeBlase foi o criador da bandeira do orgulho leather, bandeira amplamente usada em ambientes BDSM. Samuel Steward foi um poeta, romancista e tatuador da comunidade leather conhecido como Phil Sparrow, Phil Andros e muitos outros pseudônimos.

Já Guy Baldwin é um psicoterapeuta, ativista e educador influente dentro da comunidade fetichista que afirmava que a inclusão de elementos não prejudiciais B&D e S&M em um cenário consentido não caracteriza, por si só, doença mental ou disfunção psico-sexual, ao contrário do que historicamente alguns especialistas chegaram a afirmar no passado. Em 1982, Baldwin criou um banco de dados de profissionais que conheciam e não tinham preconceito contra práticas da comunidade B&D, S&M e outras fantasias sexuais relacionadas.

David Stein e o SSC

Em meados de 1983, o ativista David Stein, membro de um comitê chamado GMSMA (abreviação de Gay Male S/M Activists), inventou a terminologia do são, seguro e consensual, conhecida popularmente como SSC.

O GMSMA trazia descrito como seu propósito: “GMSMA é uma organização de gays sem fins lucrativos na área da cidade de Nova York que estão seriamente interessados ​​em S/M são, seguro e consensual. Nosso objetivo é ajudar a criar uma comunidade S/M mais solidária para homens gays, independente deles desejarem adotar isso como um estilo de vida total ou como uma aventura ocasional, independente se eles estão apenas começando com S/M ou se já são de longa data”.

Esta redação foi adotada pela diretoria do comitê em 17 de agosto de 1983 e, desde aquela data, a descrição apareceu em todos os folhetos e formulários de inscrição do GMSMA, bem como na maioria das programações, boletins e outras publicações da organização.

Na Marcha Nacional de Washington pelos Direitos de Gays e Lésbicas de 1987, o comitê decidiu criar uma versão simplificada de seu slogan. Então eles levaram uma faixa de 6 metros com a frase “são, seguro e consensual”, além da frase também ter sido estampa de camisetas produzidas para o evento.

Naquele fim de semana, milhares de homens e mulheres dos Estados Unidos e de países estrangeiros leram essas palavras, se identificaram com elas e as levaram na memória de volta às suas comunidades locais. Com o passar dos anos, essa frase foi disseminada por toda a comunidade de praticantes BDSM, antes mesmo da própria sigla BDSM existir.

O surgimento do acrônimo BDSM no alt.sex.bondage

A sigla B/D já era comum desde a década de 1970, já a sigla S/M era usada há muito mais tempo que isso. Ambas as siglas eram comumente usadas em diversos livros, revistas e eventos dessa temática. Porém, eles nunca haviam sido juntados numa sigla só, eram no máximo mencionados como “B/D e S/M” ou “B&D/S&M”. Já a sigla D/s surgiu somente por volta do final da década de 1980 e ainda não havia sido popularizada dentro da comunidade.

Nos primórdios da internet, havia um meio de comunicação bastante popular chamado usenet, que eram uma espécie de fóruns agrupados por assunto. Um dos grupos mais populares da usenet era o alt.sex. E dentre as dezenas de subgrupos dentro do alt.sex, havia um chamado alt.sex.bondage, criado em 1991 e apelidado de ASB.

Foi dentro da comunidade ASB que a sigla BDSM começou a ser utilizada e popularizada para se referir aos assuntos relacionados tanto ao B/D quanto ao S/M. Na primeira metade da década de 1990 há também menções de “SMBD” e “BDDSSM”, porém, ambas as siglas acabaram ficando em desuso por serem ofuscadas pelo “BDSM”.

No início da década de 1990, o ASB foi a maior forma de comunicação global dos praticantes BDSM. Mas com o passar do tempo, o ASB, assim como toda a rede alt.sex, começou a sofrer com propagandas e spam excessivo. Isso fez com que, em 1996, um sucessor e mais organizado grupo fosse criado, chamado soc.subculture.bondage-bdsm, também conhecido como SSBB.

Já a sigla WIITWD, abreviação de “what it is that we do”, que em português significa “o que é que nós fazemos”, foi um acrônimo inventado dentro do ASB com a intenção de abranger todas as atividades que o mundo baunilha consideraria excêntricas.

Esse termo foi desenvolvido em 1995 por indivíduos que diziam que a sigla BDSM era aplicada à apenas uma fração da comunidade fetichista, já que não são todos os fetichistas que se identificam com elementos de B/D, D/s ou S/M. O termo é propositalmente vago e amplo, e muitos não se conectaram com ele exatamente por esse motivo.

A criação do símbolo BDSM

No final de 1994, numa comunidade online de BDSM dentro do AOL, começou a surgir a discussão sobre a criação de um símbolo BDSM. A bandeira do orgulho leather já era utilizada por boa parte da comunidade BDSM, mas muitos não se identificavam com ela, pois acreditavam que o leather e o BDSM eram duas subculturas relacionadas, porém distintas uma da outra.

A inspiração para o símbolo veio da descrição do anel de O, do romance Histoire d’Or de 1954, escrito por Anne Desclos sob o pseudônimo de Pauline Réage, sendo considerada a maior obra literária BDSM do século XX.

O anel de O presente na obra se assemelha mais com o design do tríscele celta. Apesar do símbolo BDSM ter sido inspirado no anel da obra, ele foi propositalmente idealizado para ser diferente justamente para não ser sobreposto pelo significado celta.

No início de 1995, a discussão foi migrada para o ASB, e apesar de no início alguns terem considerado isso como uma afronta ao símbolo do orgulho Leather, boa parte da comunidade acabou apoiando a ideia. Com o tempo, produtos com o símbolo começaram a surgir e ele foi ganhando popularidade até naturalmente ser adotado por toda a comunidade BDSM.

Imagem comparando o triskelion BDSM (esquerda) com o triskelion celta descrito na História de O (direita).
Imagem comparando o triskelion BDSM (esquerda) com o triskelion celta descrito na História de O (direita).

A origem do RACK

Voltando um pouco no tempo, na década de 1970 foi fundada a The Eulenspiegel Society, mais conhecida como TES, uma associação e grupo de apoio para masoquistas que promove a liberdade sexual e o S/M consentido entre adultos.

Em 1999, no grupo usenet da TES, um sujeito chamado Gary Switch surgiu com a proposta do RACK, abreviação de “Risk-Aware Consensual Kink”, que em português significa “ciente dos riscos em fantasias consensuais”.

De acordo com David Stein, a criação do SSC visava estabelecer uma clara distinção e percepção pública do que é BDSM e o que é comportamento abusivo. Porém, para Gary Switch esse termo era muito vago, já que nada é 100% seguro, nem mesmo atravessar a rua. O RACK vem com a ideologia de que você deve adquirir estudo, preparo e conhecimento com a finalidade de minimizar os riscos, ao invés de declarar que tudo é seguro como diz o SSC.

Gary Switch, porém, sempre afirmou que tanto o SSC quanto o RACK são compatíveis com os princípios éticos do BDSM, e que no fim das contas, todos os termos servem como uma reflexão e são apenas maneiras diferentes de explicar “adultos que estão consentindo”.

Algumas outras organizações da atualidade

Fotografia tirada no Folsom Street Fair 2010.
Fotografia tirada durante o Folsom Street Fair 2010.

Desde 1984, ocorre um evento anual dedicado às comunidades BDSM e Leather chamado Folsom Street Fair. O evento ocorre tradicionalmente no último domingo de setembro na cidade de San Francisco, Califórnia e sua edição de 2019 contou com cerca de 300 mil visitantes.

Em 1991 foi fundado por Chuck Renslow e Tony DeBlase o LA&M, abreviação de Leather Archives & Museum, que é um arquivo comunitário, biblioteca e museu localizado em Chicago sobre a história da cultura leather e BDSM. O museu hoje conta com a maior coleção de peças originais de Dom Orejudos e Tom of Finland, acervo completo das revistas Drummer e Bound & Gagged, todas as artes de Bill Schmeling, uma das três bandeiras do orgulho leather originais projetadas por Tony DeBlase, além de diversos outros itens históricos.

Em 2008 surgiu o FetLife, maior rede social dedicada à cultura BDSM e que no início de 2020 já atingia a marca de 8 milhões de usuários, sendo atualmente a maior fonte internacional de comunicação do público BDSM, leather e fetichista em geral.

Ao longo das últimas três décadas, o BDSM se solidificou como uma comunidade em prol da liberdade sexual, que luta contra preconceitos, abusos e discriminações. E assim como toda comunidade que foge do padrão imposto pela sociedade, o BDSM também é alvo constante de críticas do público atrelado ao conservadorismo, mas vem ganhando mais seguidores a cada ano nessa luta conjunta contra a repressão sexual.

Bibliografia
Ligações internas

Texto publicado em 14 de agosto de 2020.

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