A História do BDSM: Parte III

Coleção de três fotos de Jacques Biederer

Vimos na história do BDSM que práticas com elementos de bondage e sadomasoquismo começaram a se popularizar na Europa do século XVI ao XIX. Já durante a primeira metade do século XX, foi quando começaram a surgir revistas e estúdios fotográficos que influenciaram a moda fetichista ao longo das décadas.

A inovação da moda BDSM

Uma dominadora castigando uma submissa. Foto produzida pelos irmãos Biederer na década de 1930.
Foto produzida pelo estúdio Biederer na década de 1930.

Em 1908, o tcheco Jacques Biederer mudou-se para Paris e fundou seu próprio estúdio fotográfico, Biederer Studio. Cinco anos depois, seu irmão, Charles Biederer, se juntou à ele. Durante as décadas de 1920 e 1930, eles produziram diversos ensaios fotográficos contendo bondage, impact play e outro conteúdos fetichistas. No final da década de 1930, eles criaram a subdivisão Éditions Ostra.

Outra responsável pela criação da imagem da dominatrix contemporânea e do fetichismo em geral no século XX foi Yva Richard, empresa comandada por Nativa Richard juntamente com seu marido. Os dois desenvolveram um negócio de lingeries e vestuários fetichistas, fazendo ensaios fotográficos, onde a própria Nativa era a modelo, utilizando equipamentos de bondage e sadomasoquismo em parceria com a Éditions Ostra.

Fotografia de Charles Guyette. Uma mulhere está sentada lendo uma revista e segurando um chicote enquanto um homem está no chão beijando os pés dela.
Fotografia produzida por Charles Guyette.

Esses trabalhos atravessaram o Atlântico e chegaram até Charles Guyette, pioneiro em produzir e distribuir materiais com essa temática em solo norte-americano. Ele divulgava seus trabalhos na revista London Life, que foi a revista fetichista mais importante na primeira metade do século XX, sendo distribuída em vários países do mundo.

London Life operou até 1941, quando o escritório em Londres foi atingido por uma bomba alemã, destruindo toda a maquinaria e arquivos. O impacto de Biederer/Ostra, Yva Richard e Charles Guyette no mundo pré-Segunda Guerra foram relevantes para a criação da moda fetichista, deixando um legado que persiste até os dias atuais.

O surgimento da subcultura Leather

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, uma nova subcultura LGBT começou a surgir dentro da comunidade de motociclistas. Moto clubes como Satyrs e Oedipus, em Los Angeles, e Warlocks, em San Francisco, são alguns dos pioneiros do movimento que resultou no surgimento da subcultura Leather.

Fotografia da década de 1950 contendo cinco motociclistas do moto clube Satyrs.
Fotografia da década de 1950 do Satyrs, o mais antigo moto clube gay.

Leather, que em português significa “couro”, adota um estilo de vida que envolve vestimentas e acessórios de couro. Bares e eventos dedicados à essa comunidade foram surgindo a partir da década de 1950 e muitos deles acabaram se tornando um palco de experimentação de B&D e S&M.

Com isso, o Leather é tido como o precursor do BDSM devido ao seu desenvolvimento com protocolos de comportamento e segurança fetichistas, a relação de top e bottoms, entre outros tópicos relacionados. Foi ali que o BDSM como hoje conhecemos começou a tomar forma.

Apesar de sempre ter sido composta majoritariamente por homens gays, ao longo dos anos mulheres lésbicas e outras pessoas de todos os gêneros e orientações sexuais foram se juntando à subcultura Leather e suas práticas. Grupos feministas como Lesbian Sex Mafia, Samois e The Outcasts foram sendo criados dentro movimento Leather e o ajudaram a moldar o BDSM como conhecemos hoje.

O rei e a rainha do pin-up

O período pós-Segunda Guerra também foi marcante na continuação do desenvolvimento da moda fetichista iniciada pelos nomes já mencionados anteriormente neste artigo.

No final de 1945, John Willie, que havia sido introduzido ao cenário fetichista por Charles Guyette, criou a revista Bizarre, que durou até o final da década de 1950 e abordava bondage, sadomasoquismo, travestismo, fetichismo por sapatos e outros temas relacionados. Já a Exotique durou de 1955 à 1959, era totalmente dedicada ao femdom e contava com colaborações de dois dos principais artistas fetichistas da época: Eric Stanton e Gene Bilbrew.

Eric Stanton, Gene Bilbrew e diversos outros desenhistas e fotógrafos fetichistas trabalharam com o publicitário Irving Klaw durante a década de 1950. Irving foi o sucessor de Charles Guyette e foi chamado de o Rei do Pin-up, estilo de arte erótica popular na época.

Bettie Page foi a modelo mais famosa a trabalhar com Irving. Ela era comumente chamada de Rainha do Pin-up e Rainha do Bondage e realizou diversos ensaios fotográficos tanto no papel de top como no papel de bottom. Devido à alta popularidade que tiveram na época, Irving e Bettie foram duas personalidades que ficaram eternizadas na caracterização da moda BDSM.

Duas fotografias de Bettie Page. Na imagem da esquerda ela está amarrando uma mulher, na direita ela está amarrada e sendo castigada por uma mulher.
Duas fotografias de Bettie Page. Na imagem da esquerda ela está no papel de top e na direita ela está no papel de bottom.

A influência da literatura erótica francesa

A década de 1950 também foi palco de duas obras francesas de alta relevância para a história do BDSM: Histoire d’Or de 1954, escrito por Anne Desclos sob o pseudônimo de Pauline Réage, e L’Image de 1956, escrito por Catherine Robbe-Grillet sob o pseudônimo de Jean de Berg.

Anel de O conforme descrito na História de O
Ilustração do anel de O conforme é descrito na obra. Bem diferente do anel de O dos dias de hoje.

Em Histoire d’Or, a protagonista utilizava um anel como símbolo de obediência. Esse anel ficou conhecido como “anel de O” e hoje em dia é utilizado em coleiras BDSM para simbolizar um indivíduo que é submisso na relação.

Porém, o anel descrito na obra é bem diferente do anel de O adotado pela comunidade BDSM e possui um tríscele, também conhecido como triskelion, de ouro no topo. Esse tríscele posteriormente serviu de inspiração para a criação do símbolo BDSM.

Já a escritora Catherine Robbe-Grillet, dois anos após Histoire d’Or, estava começando sua carreira na literatura erótica ao lançar a obra L’Image, que conta a história de um triângulo amoroso sadomasoquista, censurada duas vezes na França. Ela também teve uma carreira sólida como atriz, participando de diversos filmes e peças de teatro francesas.

Catherine sempre se considerou uma lifestyle dominatrix e é considerada uma das figuras mais notórias na Europa dentro da literatura erótica BDSM. Atualmente ela é viúva do escritor Alain Robbe-Grillet, ex-membro da Academia francesa, e desde 2005 vive num relacionamento D/s com a sul-africana Beverly Charpentier.

O BDSM nos holofotes e as pulps S&M

Fotografia da década de 1960 de Monique von CleefEm dezembro de 1965, uma dominatrix holandesa que morava nos Estados Unidos chamada Monique von Cleef (ver fotografia ao lado) virou manchete em todos os jornais e programas de TV norte-americanos numa operação policial onde seu estabelecimento, conhecido como “House of Pain, foi invadido.

Sua lista de clientes foi entregue ao FBI, e todos seus pertences foram confiscados. Monique foi mandada para a prisão por quatro meses, mas depois ganhou o caso na Suprema Corte, que concluiu que a polícia havia abusado de seus poderes em sua busca e apreensão.

O caso de Monique von Cleef colocou a cultura sadomasoquista nos holofotes e, logo após o ocorrido, ela transferiu seus negócios para a cidade de Haga, na Holanda, e o local acabou se tornando uma das capitais mundiais do femdom.

Mas apesar da profissão de dominatrix existir desde meados do século XVI, o termo “dominatrix” é algo que só veio a surgir no final da década de 1960, através de um estilo de revista conhecido como pulp.

Capa do livro The Velvet UndergroundUma das primeiras pulps a falar sobre o cenário underground sadomasoquista foi The Velvet Underground (ver imagem ao lado), de 1963, por Michael Leigh. Essa pulp depois foi inspiração para o nome da prestigiada banda de rock americana, também chamada The Velvet Underground, fundada em 1964. O líder dessa banda, Lou Reed, também escreveu a música “Venus in Furs”, inspirada no clássico romance D/s de Leopold van Sacher-Masoch, fazendo referência à relação da mistress com seu escravo.

Em 1967, a pulp de Bruce Rogers, The Bizarre Lovemakers, foi a primeira a obra a utilizar a terminologia “dominatrix”, usando a palavra para descrever uma mulher que aplica punições em troca de dinheiro. Porém, essa terminologia só veio a ser popularizada após o filme francês Maîtresse de 1975, e o filme norte-americano Dominatrix without Mercy de 1976, duas produções relevantes na propagação da cultura sadomasoquista.

Capa de The Bizarre Lovemakers e pôsters dos filmes Maîtresse e Dominatrix without Mercy.
Capa de The Bizarre Lovemakers e pôsters dos filmes Maîtresse e Dominatrix without Mercy.

Sequência de romances de Anne Rice

Anne Rice é uma escritora com forte influência na literatura gótica e erótica, já vendeu ao todo mais de 100 milhões de cópias e é autora de uma renomada saga chamada Crônicas Vampirescas (título original em inglês: The Vampire Chronicles). Durante a década de 1980, ela também foi autora de diversas obras de temática BDSM.

Sob o pseudônimo A. N. Roquelaure, ela escreveu a saga Bela Adormecida (título original em inglês: Sleeping Beauty), que conta com diversas cenas envolvendo tanto maledom quanto femdom. Ao todo, foram três livros lançados em anos consecutivos: 1983, 1984 e 1985. Vinte anos depois ela deu sequência à essa saga com mais uma obra.

Mas ainda em 1985, o sucesso da trilogia fez com que ela desse continuidade ao tema BDSM ao publicar, dessa vez sob o pseudônimo Anne Rampling, um outro romance chamado Exit to Eden. A narrativa acompanha a história de Lisa Kelly, dona de um resort BDSM, e seu escravo Elliot Slater e tornou-se a principal obra literária dessa temática lançada nos anos que antecederam o surgimento da comunidade BDSM.

Bibliografia
Ligações internas

Texto publicado em 14 de agosto de 2020.

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