A História do BDSM: Parte II

Gravura do século XVIII mostrando uma mulher castigando um homem num contexto sadomasoquista.

Quando falamos sobre a história do BDSM, a profissão de dominatrix foi a maior responsável pela popularização das práticas sadomasoquistas na sociedade durante a Idade Moderna e início da Idade Contemporânea. Esse tipo de serviço surgiu para suprir o desejo fantasioso de dominação erótica por uma figura feminina poderosa e disciplinadora.

Fílis e Aristóteles

A fantasia que inspirou a profissão de dominatrix é a imagem erótica da mulher em posição superior de poder sexual. Dentro da arte, essa fantasia de dominação feminina sobre o homem foi incorporada pela imagem renascentista popular de Fílis e Aristóteles.

Fílis e Aristóteles é um conto medieval que se originou e ganhou inúmeras versões por volta dos séculos XII e XVI que conta a história de uma mulher dominadora que seduziu e dominou o intelecto masculino do maior dos filósofos.

Gravura feita por Lucas van Leyden, aproximadente em 1520. Fílis está cavalgando em Aristóteles enquanto o chicoteia.
Gravura aproximadamente do anos de 1520, feita pelo holandês Lucas van Leyden.

Na história, Aristóteles aconselha seu pupilo, Alexandre, o Grande, a evitar Fílis para se concentrar em seus estudos e deveres reais. Enfurecida com a atitude do filósofo, Fílis decide vingar-se dele.

Ela seduz Aristóteles e, como prova de amor, obriga o filósofo a ficar de quatro no chão do jardim para que ela cavalgue nas costas dele enquanto o chicoteia. Alexandre, que já havia sido alertado por Fílis sobre o que viria a acontecer, testemunha a humilhação de seu tutor.

Esse conto é uma representação pioneira de pony play. Sua criação é atribuída ao escritor Henri de Valenciennes e ganhou obras de diversos artistas renomados da época como Hans Baldung, Albrecht Dürer e Lucas Cranach.

O conto originalmente era para servir como uma parábola, como uma lição sobre o poder de atração erótica de uma mulher e as consequências de sucumbir a isso. Porém, Fílis exemplificou um arquétipo de dominatrix, influenciando indiretamente o surgimento da profissão. A história foi reproduzida em dezenas de esculturas, pinturas e gravuras nos séculos seguintes, transmitindo uma imagem erótica da dominação feminina na mente das pessoas.

A origem da dominatrix

A figura da dominatrix navegava pela imaginação de uma parcela específica da população. Não só de homens cujas fantasias sexuais iam nessa direção, mas também de mulheres que gostavam da ideia de dominar.

O posicionamento de uma mulher acima de um homem estava em desacordo com as normas sociais impostas pela religião patriarcal, nas quais as mulheres eram, em termos gerais, consideradas submissas e obedientes aos maridos.

O arquétipo da dominatrix derrubava essas normas sociais, sustentando uma posição feminina de superioridade e poder onde o homem se torna submisso e obediente. Aqui, o homem encontra excitação sexual e realização neste papel, na submissão a uma mulher poderosa e na estrutura da disciplina e devoção.

É nesse cenário que surge a dominatrix. Clientes passaram a frequentar bordéis pedindo por flagelação e com isso o nicho sadomasoquista foi criado naturalmente através da lei de oferta e demanda. Com o tempo, algumas mulheres foram ganhando reputação por sua aptidão em conduzir cenas e transmitir autoridade.

Originalmente, a profissão de Dominatrix surgiu como uma especialização dentro de bordéis, antes de se tornar seu próprio nicho e começar a surgir estabelecimentos exclusivos de flagelação comandados por dominatrixes. Já na década de 1590, há registros de flagelação feita por uma mulher dominante dentro de um cenário erótico.

Obras notáveis da época

The Cully Flaug’d, mezzotinta de aproximadamente 1672-1702 de Marcellus Laroon II.Uma das primeiras pinturas da época a mostrar uma mulher dominante num cenário de flagelação erótica, foi a mezzotinta chamada The Cully Flaug’d (ver imagem ao lado). A obra é atribuída ao holandês Marcellus Laroon II e acredita-se que ela tenha sido feita entre 1672 e 1702.

Memórias de uma Mulher de Prazer, mais popularmente conhecido como Fanny Hill, foi um romance erótico escrito pelo britânico John Cleland e publicado em 1748. É considerada a primeira obra pornográfica publicada como romance e foi um dos livros mais processados da história, que inclusive acabou resultando na prisão do autor.

Dentre as diversas situações sexuais explícitas presentes na obra, há uma cena onde a protagonista, Fanny Hill, realiza atividades de bondage e flagelação com Mr Barville. Na história, Fanny Hill e Mr Barville alternam os papéis de top e bottom.

Apesar da obra ter sido oficialmente retirada de impressão, cópias piratas surgiram e ela continuou a circular cladestinamente como um “livro proibido”. Devido à sua alta popularidade, Fanny Hill foi grande responsável por difundir fantasias de flagelação e impulsionar a profissão de dominatrix.

Lista do Fashionable Lectures com o nome de 57 dominatrixes de Londres.Após Fanny Hill, foram surgindo nas décadas seguintes inúmeras obras artísticas e literárias destacando a flagelação erótica. Uma das mais marcantes que podemos citar é Fashionable Lectures, de 1761.

Essa obra foi publicada sob o pretexto de ser um conjunto de palestras teatrais, mas na verdade isso era apenas uma máscara para um anúncio de “disciplinadoras”, listando em seu frontispício cerca de 57 nomes femininos (ver imagem ao lado).

Todas as pessoas listadas eram na verdade mulheres que ofereciam serviço de flagelação em Londres. Dentre as mais notáveis da época, podemos mencionar Fanny Murray, Nancy Parsons e Kitty Fisher.

A era de ouro

No século XIX foi quando ocorreu a era de ouro das dominatrixes na Inglaterra, que na verdade eram chamadas de “governess”, que em português significa “governanta”. Durante a década de 1840, foi documentado de terem existido, no mínimo, 20 estabelecimentos especializados em flagelação erótica, conhecidos como Casa da Disciplina, somente na cidade de Londres.

No prefácio do livro The Venus School-Mistress, na edição datada de aproximadamente 1836–77, uma mulher chamada Mary Wilson cita Mrs Chalmers e Mrs Noyeau como as dominatrixes mais relevantes nos anos que antecederam essa era de ouro. E acrescenta que dentre todas as “governantas” que existiram durante a era de ouro, a mais notável sem dúvida nenhuma foi Mrs Theresa Berkley.

The Berkley Horse, invenção de Mistress Theresa Berkley.Além de possuir uma clientela da mais alta aristocracia e ser mencionada como uma dominadora que levou a flagelação erótica à um novo patamar, Berkley também foi responsável por criar um equipamento chamado “The Berkley Horse” (ver imagem ao lado).

Berkley era dona da maior casa da disciplina de Londres e sua invenção popularizou-se entre outras dominatrixes, que também adotaram este aparelho em suas cenas sadomasoquistas. Outro equipamento relatado de ter existido no estabelecimento de Mrs Berkley foi um gancho que amarrava as mãos de seus clientes para pendurá-los.

A Vênus das Peles

Em 1869, o escritor austríaco Leopold von Sacher-Masoch recebeu uma carta assinada por Baronesa Bogdanoff, que era na verdade uma aspirante a escritora chamada Fanny Pistor pedindo por dicas de escrita.

Após se conhecerem, os dois se envolveram num relacionamento de dominação e submissão e estabeleceram uma espécie de contrato BDSM. Alguns dos trechos desse contrato que podemos destacar são:

“O senhor Leopold von Sacher-Masoch dá sua palavra de honra à senhorita Pistor para se tornar seu escravo e obedecer sem restrições, por seis meses, a cada um de seus desejos e ordens (…) Para cada ofensa, negligência ou crime de lesa-majestade, a mistress (Fanny Pistor) poderá punir seu escravo (Sacher-Masoch) da maneira que ela ache adequada. (…) Senhorita Pistor, por sua vez, promete usar roupas de pele com a maior frequência possível, especialmente quando estiver sendo cruel.”

O contrato, datado de 8 de dezembro de 1869, também previa que Sacher-Masoch pudesse separar uma pequena parte de seu dia para se dedicar à um trabalho que ele viria a escrever.

Quando o contrato de seis meses dos dois se encerrou, cada um seguiu sua vida. E antes mesmo de 1870 terminar, Sacher-Masoch estaria lançando a obra que eternizaria o nome do autor e marcaria o pontapé inicial da literatura BDSM: A Vênus das Peles, lançada originalmente sob o nome de “Venus im Pelz”, em alemão.

Fanny Pistor sentada segurando um chicote e Sacher-Masoch no chão
Ilustração com Fanny Pistor segurando um chicote e Sacher-Masoch no chão.

A história da obra descreve o relacionamento de dominação e submissão entre Wanda von Dunajew, inspirada em Fanny Pistor, e Severin von Kusiemski, baseado no próprio Sacher-Masoch. O livro foi bastante polêmico para a época, mas acabou inspirando outras autoras e autores a escreverem sobre essa temática nas décadas seguintes.

Em 1886, o psiquiatra austríaco, Richard Freiherr von Krafft-Ebing, criou a palavra “masoquismo”, derivada do nome de Sacher-Masoch, para descrever uma anomalia sexual em querer sentir dor. Em contrapartida, esse mesmo psiquiatra criou a palavra “sadismo”, baseada num escritor francês chamado Marquis de Sade que escrevia sobre violência em geral e outras crueldades, para descrever uma anomalia sexual em querer causar dor.

Na época, Sacher-Masoch declarou publicamente não ter gostado de ter seu nome usado num diagnóstico psiquiátrico, porém, anos mais tarde, a comunidade fetichista adotou os termos masoquismo e sadismo e a sigla S&M começou a ser utilizada para descrever práticas eróticas envolvendo dor.

Bibliografia
Ligações internas

Texto publicado em 14 de agosto de 2020.

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